Todas as vidas que eu não vivi
“Se eu soubesse o que sei hoje…”.
Quantos momentos da nossa intimidade são assaltados por pensamentos que começam assim?
Quantas horas, no somatório dos nossos dias, não passámos perdidos em cenários hipotéticos em que tínhamos feito algo diferente. Talvez surjam com maior ferocidade e menor benevolência quando algo na nossa vida não está a correr bem. Mas o certo é que o deleite tortuoso do “e se” nos assoma mesmo nos momentos de maior gratificação pessoal. Nestes, com um suspiro de alívio, dizemos “epa! o que seria se eu não tivesse…”. Quando escolhemos “bem” congratulamo-nos por uma vida bem vivida, um caminho bem planeado, sólido, estável, digno de exaltação! Quando escolhemos “menos bem” e o resultado das nossas ações não se assume como o esperado, apresentamo-lo também como medalha de honra, dizemos coisas como “sou a pessoa que sou graças a tudo o que vivi”. Certo, nem tudo está sob o nosso controlo. (Nem deve estar.) A decisão pode ter sido acertada mas, por questões que nos ultrapassam, a história que se desenrolou não era a previsível, nem a desejada.
Isto leva-nos (ou leva-me a mim!) à velha questão quasi-filosófica da predestinação vs. livre-arbítrio. Passamos a nossa vida a fazer escolhas, a tomar decisões sem garantia de resultado, mas com ilusão de controlo. O que é facto, é que cada um de nós tem a vida que tem pelas decisões que tomou e pelo suor do seu esforço e determinação. É também facto que cada um de nós tem a vida que tem porque alguma coisa, em algum momento, não foi como planeado… Afinal, somos nós a força motriz da nossa vida, ou temos que nos resignar perante a inocuidade das nossas ações?
Uma senhora chamada Elm e uma menina chamada Nora* acenderam a chama desta pequena tertúlia mental que existia ainda sem forma nos recessos do meu ser. Quando pensamos na nossa vida e imaginamos aquilo que podíamos ter feito diferente, tendemos a pensar nas grandes decisões, como se fossem cruzamentos para estradas sem saída – se tivesse estudado jornalismo em vez de psicologia; se tivesse escolhido morar noutra cidade; se tivesse aceitado aquele trabalho; se tivesse feito mais por aquela pessoa; se não tivesse aceitado aquele encontro… (que grande alívio se as coisas correram bem… que grande arrependimento se as coisas correram mal!). E esses são os que já fazem história! Nem me atrevo a enumerar os alarmes que se fazem sentir como tsunamis de todas as estradas sem saída em que, atualmente, apalpo o caminho às escuras.
Como faço meu o encontro de Nora com a senhora Elm, apercebi-me de que todas essas escolhas, todas essas decisões, e todos esses cenários imaginados do que teria sido são como mundos paralelos em que tudo pode acontecer. Mas são mundos reais. E no mundo real, as escolhas não acontecem no vácuo. O cenário que eu imagino do que “teria sido se…” é apenas uma hipótese – a nossa mente não tem capacidade para conter as infinitas possibilidades que surgem a cada momento. Quando olho para as escolhas que fiz e as decisões que tomei como algo estático e imutável, estou a roubar de mim própria um mundo de possibilidades e caminhos não percorridos. As escolhas não são estradas sem saída. São portas para outras realidades, são biografias por escrever. As escolhas são o caminho de todas as possibilidades. E são nossas – se tivermos a coragem de as ver.
Existe predestinação. Os caminhos que eu posso percorrer são predestinados. Todos os infindáveis caminhos, com todas as infindáveis curvas e mudanças de direção existem para serem percorridos. A minha escolha não vai afetar a forma como o mundo reage a ela – isso eu não controlo. A reação à minha escolha vai acontecer da forma que já iria acontecer.
Mas existe livre-arbítrio. Em todos os momentos, com todas as reações à minha ação, e a cada pessoa que surge e acende uma nova possibilidade que não conseguia ver antes, eu posso escolher. A cada momento eu decido o meu caminho.
O segredo, é que a decisão que contém a vida que realmente me preenche não existe. Ela está contida em todas as pequenas e grandes escolhas e momentos da minha vida…
O segredo, é que a porta para uma nova biografia pode ser invisível até termos coragem de olhar para ela.
O segredo, é que nunca vamos saber o que nos espera do outro lado.
O segredo, é que não precisamos de o saber, só de o viver.
Porque a escolha está em todos os momentos – agora e sempre – e só termina quando abdicamos dela.
* texto inspirado pela obra “Biblioteca da meia noite” de Matt Haig
Dedicado à minha amiga Marta,
que já me mostrou tantas portas invisíveis